Ninguém quer ser lateral. Ele é um ponta ou um zagueiro que deu errado. Está certo?


Gary Neville foi duas vezes campeão da Liga dos Campeões  e jogou três Copas do Mundo e três Eurocopas como lateral direito. Uma carreira de sucesso. Mas seu colega comentarista de uma emissora de TV inglesa disse  "Ninguém sonha em ser Gary Neville. Ou é um ponta que deu errado ou é um zagueiro que deu errado". Ele está certo?

Os laterais não faziam parte dos primeiros esquemas táticos do futebol. Apenas na década de 50 começaram a ser utilizados. Na história tática do futebol, o esquema clássico era a pirâmide, 2-3-5, com apenas dois zagueiros. Chapman, técnico bicampeão inglês com o Arsenal no começo da década de 30, pensou que ter um zagueiro a mais seria útil para defender melhor. Afinal, quem toma menos gol ganha o jogo da mesma maneira que quem faz mais gols. Então criou o 3-4-3, também chamado de 3-2-2-3. Mas, naquele tempo ninguém gostava de matemática e o nome ficou WM . O desenho abaixo mostra melhor como ele era.

3-4-3 ou 3-2-2-3. O WM

Mas, defender três atacantes com três zagueiros deixava com que o ataque precisasse passar apenas por um jogador para ficar cara a cara com o goleiro. Não seria melhor ter um zagueiro na sobra? Dessa ideia surge o 4-2-4, da década de 50. O W-M tinha o zagueiro direito, central e esquerdo. Os zagueiros direito e esquerdo se tornaram laterais. Os outros dois zagueiros passaram a se chamar central, que fica na direita, e quarto zagueiro. O esquema W-M geralmente era torto, com o lado esquerdo mais adiantado. Então o último jogador a descer para a zaga foi o zagueiro pelo lado esquerdo. Mas por quê não zagueiro esquerdo? Porquê a princípio os laterais eram defensores puros, tanto quanto os zagueiros. Quando em 58 Nilton Santos subiu ao ataque e fez um gol na Copa do Mundo e deu uma assistência para gol estava sendo revolucionário.

A ideia de que os laterais são defensores era muito mais forte até os anos 80 no Brasil. Quando Nilton Santos envelheceu e perdeu fôlego e se tornou quarto zagueiro. Carlos Alberto Torres, capitão de 70, se tornou zagueiro central, pelo mesmo motivo. Leandro, da Copa de 82 se tornou zagueiro central por conta de muitas lesões. O que fez com que ele não tivesse mais condições de ir ao ataque e voltar tanto quanto antes. Esse três estão entre os laterais mais técnicos que o Brasil teve. Nenhum caso de zagueiro que deu errado. Leandro também jogou de volante e meia em altíssimo nível. Os três escolheram ser laterais porque preferiram jogar lá. 

Gol do Nilton Santos na Copa de 58. Note que é chamado de zagueiro

Nenhuma posição tem tanta exigência física quanto laterais. Se sobem muito ao ataque há queixas de defenderem mal. Quando defendem mais, dizem que somem no jogo. Devem ser rápidos e habilidosos, terem muito senso de antecipação e resistência física. Saber cruzar e construir jogadas. Então precisam ser um ponta e um zagueiro em um jogador só. Alguns pouquíssimos conseguem fazer tudo isso em altíssimo nível. Cafu, sempre recebeu muitas queixas por não cruzar bem. O que mostra que apesar da alta exigência nunca foram tão valorizados. Mas alguns times os utilizaram bem.

Houve vários times jogando com dois laterais ao mesmo tempo. Na Copa de 2010 Daniel Alves e Maicon eram usados juntos na ala direita. No Bayern de Guardiola eram Lahm e Rafinha. Um deles era muito mais liberado para o ataque e a troca de posicionamento entre eles confundia o adversário. Além de haver uma defesa bem mais forte com essa tática. Já se disse muito que se Marcelo e Filipe Luís tivessem jogado juntos na Copa de 2018 o Brasil não perderia para a Bélgica. Marcelo é muito mais ofensivo e liberaria mais Neymar, além de Wiliam estar em má fase durante a Copa. Filipe Luís impediria que o espaço nas costas de Marcelo fosse usado pelo time belga. Seria possível também seu uso como meia.

Cerca de metade dos jogadores muda de posição durante a carreira. A transformação de lateral em meia é muito comum. Júnior foi lateral na Copa de 82 e meia em 86. Essa mudança o poupou muito fisicamente e permitiu que com 38 anos fosse o melhor jogador do Brasileirão de 92. Mazinho foi lateral em 90 e meia em 94, cumprindo um papel tático fundamental para o tetra. Leonardo foi lateral em 94 e meia em 98. Zé Roberto, lateral em 98, volante em 2006 e meia entre as duas copas. Gilberto, lateral em 2010, mas meia em seu clube. Todos eram bons construtores de jogo e habilidosos. Também poderiam recompor bem, o antigo voltar para marcar. A mudança permitiu que Leonardo e Gilberto tivessem mais protagonismo. Mas todos os outros são lembrados pelas duas posições igualmente. Na Europa e Argentina a transição para zagueiro é mais comum. Como Maldini e Heinze fizeram.

Cafu, uma demonstração de sua carreira.

Cafu começou sua carreira como ponta. Telê Santana, seu técnico no São Paulo, pediu para ele jogar como lateral porque o titular se machucou. A contragosto, foi. Telê logo reconheceu seu talento e gastou muitas horas para ajudar na transição. Cafu poderia ter continuado como um bom ponta. Mas, teve a chance ser o melhor lateral-direito da Américas quatro vezes, o melhor lateral direito do mundo pela FIFA em 2005 e membro da seleção da Europa. Também conseguiu jogar três finais de Copa do Mundo, um recorde. E ser o brasileiro que jogou mais partidas na Copa. Cafu não foi um ponta que deu errado, mas um lateral que deu muito certo.

Roberto Carlos foi um dos galáticos do Real Madrid Foi três vezes campeão da Liga dos Campeões e o segundo melhor do mundo em 97. Foi duas vezes para a Seleção da Copa da FIFA, em 98 e 2002. Eleito quarto melhor jogador da história do Real Madrid e o melhor lateral da sua história. Além de melhor lateral do mundo entre 97 e 2004. Não conseguiria nada disso no ataque e segundo ele mesmo foi o motivo principal de não ter continuado na Inter de Milão. Ele jogou como ponta e meia em Milão. Mas ele precisava de muito espaço para armar as jogadas. Seus melhores chutes são de longe. A velocidade dele era fantástica, a aceleração só muito boa. Mas isso significa que deu errado como ponta? Não, apenas que seria melhor ainda como lateral. Em 95 a Inter era um dos melhores times do mundo, rico o bastante pra contratar o melhor do mundo com a mais cara transferência da história. E Roberto Carlos era o titular daquele time. Porém ainda conseguiu ser melhor voltando a ser lateral.

Roberto Carlos

Carragher errou quando falou que laterais são pontas ou zagueiros que deram errado. Mas acertou quando disse que ninguém quer ser Gary Neville. Os jogadores tem seus sonhos de fazerem o gol do título no último minuto. Porém, mais importante para todos é conseguir o título. Quantos gols de título Roberto Carlos fez? Nenhum. Mas é mais lembrado como jogador que Denílson, ponta da seleção de 2002. Que também nunca fez um gol de título. Talvez Alexander-Arnold atinja seu objetivo de mostrar para os jovens que também é bom ser um lateral. Taffarel, Marcos, Rogério Ceni e Neuer já ajudaram muito com os goleiros. Nada impede que surjam escolas de laterais como hoje existem escolas de goleiros. 

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